Crónica semanal dele, António Lobo Antunes.
"E agora começa a anoitecer tão cedo. (…) o fim do dia sempre me trouxe, sei lá porquê, uma espécie de tristeza mansa, um desejo vago de coisas mais vagas ainda, uma inquietação doce, um estado de alma impossível de exprimir, não inteiramente agradável, não inteiramente desagradável, estranho apenas, um
(como dizer?)
sorriso com uma lágrima tranquila dentro, percebem? Tão difícil traduzir as emoções em palavras, é tão pobre o vocabulário que temos (…). dizia que começa a anoitecer tão cedo, as árvores do dia que nada têm a ver com as árvores da noite, misteriosas, densas, falando, falando, a engordarem de pássaros. Janelas iluminadas e eu a imaginar as vidas atrás das cortinas. (…) Gestos femininos bonitos sempre, a delicadeza com que as mulheres tocam nos objectos, a harmonia dos dedos: somos pesados e sem graça, nós os homens, ao pé delas. Pesados, brutos, canhestros: não possuímos seja o que for de ave ou de nuvem, a nossa carne é densa e gaguejante. Dá-me uma paz de eternidade ver uma mulher numa casa, o modo como o seu corpo habita o espaço, a forma como vestem, de si mesmas, os compartimentos, com um simples passo, um simples olhar. E depois uma espécie de inocência primordial, de leveza habitável: devo ter sido muito feliz na barriga da minha mãe, por dentro da sua voz, do seu sangue. Faz noventa anos agora e continua com dezoito. (…) A solidão tem um cheiro próprio que se sente à distância. (…) não fica nada, enquanto os gestos das mulheres vão colorindo o silêncio. (…) Noventa anos, a minha mãe, que número impossível. Porque diabo consentiu que o tempo passasse, diga lá? Pequenina, frágil, indefesa. (…) O sorriso mudou, transformou-se num clima resignado, com uma chuvinha perpétua. (…)
eu que tenho passado o tempo a bater a portas abertas por timidez, por vergonha. A porta aberta e eu à entrada, com os nós dos dedos, tac tac. Gosto da expressão nós dos dedos, eles que não possuem nós. (…) E começa a anoitecer tão cedo? (…) O que faremos nós se a noite não acabar nunca? Convoco os meus mortos, os meus vivos, aqueço as mãos na saudade de ti, e aquecer as mãos na saudade de ti há-de chegar para eu ser feliz. As vidas além das cortinas iguais à minha? Diferentes? (…) Qual o meu nome verdadeiro por trás do António que as pessoas conhecem? Não tenho nome: sou estas mãos, este corpo, esta caneta que escreve. (…) O que haverá de mais eterno que uma menina a brincar? Em todas as mulheres, até na minha mãe, vejo uma menina a brincar. (…) Quero viver. Não faço ideia como isto apareceu na página mas quero viver. Sou tanta gente às vezes. As árvores à noite que não cessam, não cessam. Não morro nunca, pois não? Não morro nunca. Prometo. (…) Não tenho jeito. Estendo a palma para ti e não tenho jeito: sou apenas um homem. (…)"
2 comentários:
Estamos a chegar ao final do ano!!
Obrigada por continuares a publicar aqui as crónicas... Aproveito para te desejar um feliz ano de 2008*
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