“O esquimó
Um domingo de nuvens sujas a sujarem a tarde na janela, as árvores, as casas. A sujarem-me a mim. Escrevo isto na cozinha enquanto um electrodoméstico qualquer vai zunindo (...). Sou um inepto, não sirvo para nada, não me entendo com estes aparelhos, não me entendo com o lado imediatamente prático da vida (...).
Devia ter nascido esquimó. Nem comer decentemente sei. Escrevo livros e é um pau, quer dizer escrevi livros. Voltarei a escrevê-los? Não faço a menor ideia, não penso nisso. Talvez, e um talvez bastante indeciso. (...)
(...) De que maneira funcionará este cubo incompreensível? Fico sentado sem pensar em nada, sem sentir nada, sem desejar nada. O telefone toca
(o telefone sei atender)
e deixei-o tocar. Toca
interminavelmente, o parvo, com alguém na outra ponta à espera. (...) Ao fim de séculos desiste. (...) A imobilidade dos objectos sempre me surpreendeu. (...)
Porque diabo escrevo isto? Agarrei no bloco e as palavras começaram a sair sozinhas. (...) Desconfio desta facilidade, dá-me ideia que andam a mangar comigo, que pretendem que eu acabe isto depressa e as deixe em paz. Devem ter as suas razões e pela minha parte vou-as recebendo sem crítica. (...) Não me sinto alegre nem triste. Sinto-me parado como a árvore negra do quintal. (...)”
António Lobo Antunes
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