domingo, julho 08, 2007

Visão nº 748

“21 de Junho

Almoço com a minha filha mais velha, pelos seus anos, num dos restaurantezinhos próximos do sítio onde escrevo. De vez em quando o telemóvel dela toca e parabéns, parabéns (...). Não perdoo quase nada à Ditadura e o que menos lhe perdoo foi não ter assistido à gravidez da mãe e não estar presente quando chegou. (...) Uma filha fantasma em que não podia tocar, não podia ter ao colo, não podia beijar. Lembro-me de ter ido para junto do arame farpado, sozinho, num sofrimento imenso, e diante de mim, o rio, a mata, a infinita paisagem da minha dor. Conheci-a com quatro meses, deitada no berço a dormir, inclinei-me para ela e continuo, ainda hoje, a sentir o seu cheiro, a ver as suas mãos, o seu corpo, o seu cabelo loiro, os pezinhos que me cabiam inteiros na boca. (...) Cada 21 de Junho, ao olhá-la, vem-me à cabeça, como num vómito instantâneo, o que acabo de escrever. Fico muito quieto à frente dela no restaurante, tenha a idade que tiver, com os seus pés na minha boca e o seu cheiro a embuchar-me.
Quis tanto que viesse: pensava
- Vou morrer aqui
pensava
- Se tiver um filho ainda que morra não morro
e desde então é a certeza da minha imortalidade e da minha permanência. (...)
Toda a guerra é horrível: os mortos, os feridos, o isolamento, a estupidez cruel, as nossas existências precárias e indignadas. Mas, maior que isso, o nascimento da minha filha foi o que mais me custou pela violência dos sentimentos contraditórios que acendeu em mim, pela dúvida
- Será verdade, não será verdade?
e pela minha furiosa, quase assassina indignação. (...)
Se Deus me fizesse o favor de voltar com os ponteiros para trás, agradecia: nada se pode comparar, julgo eu, a estar presente na altura em que uma criança nossa
(em que uma criança minha)
rompe no mundo. Por isso o dia 21 de Junho
(...)
é uma data estranha que nunca se pacifica cá dentro. (...)
Como esta expressão é verdadeira: o coração num pingo. Não é uma imagem nem uma metáfora: o coração num pingo. (...) Não posso meter os seus pés na minha boca
(cresceram imenso)
e a minha dificuldade em exprimir ternura impede-me de a abraçar como desejaria. Para ali fico, aparvalhado: parece uma mulher e mentira: é o bebé que me roubaram, é a alegria que recusaram dar-me. É o meu bebé e o meu bebé come de faca e garfo, atende o telemóvel, cresceu inacreditavelmente depressa para a ter no colo. (...) O facto de comermos cerejas do mesmo prato comove-me. De vez em quando os nossos dedos roçam-se, apetece-me apertar-lhos e nãos os aperto: estou de papel em riste a ler
(...)
Sou um pingo fardado, uma gotinha que vibra. Sou um alfereszito de vinte e tal anos a tremer contra o arame farpado. Um camarada meu aproximou-se: o Eleutério. Gostava, gosto do Eleutério. (...) Agradeço-te, Eleutério, o que trocámos sem palavras.
Ó capitão para mim
- Parabéns, parabéns
e compreendi nesse momento que a resposta possível a
- Parabéns, parabéns
era a cabeça voltada para o outro lado e a exclamação
- Caralho
tão baixinho que o mundo inteiro ouviu.”

António Lobo Antunes

1 comentário:

GK disse...

Um "caralho" muito justo, ora!
:)
Bj.