“Este final de Setembro, o mês dos meus anos, tem-me custado. Perguntas sobre perguntas acerca de mim mesmo e a angústia do sentido da vida e da forma como me relaciono com ela. O que posso fazer? (…) Os meus defeitos aparece-me de forma muito clara e dolorosa. Não só os meus defeitos: as minhas insuficiências, os meus erros. Sempre imaginei que um livro resgatava tudo: não resgata. E no entanto continuo a escrever, como se esse acto contivesse em si a minha salvação. Sei bem que chegará um tempo em que apenas os livros hão-de contar porque eu, enquanto pessoa, não tenho importância alguma, às vezes nem para mim mesmo. (…) Não estou deprimido, não me sobra tempo para depressões, sou apenas um homem, diante do seu espelho interior, que não gosta do que vê. O que poderia ter feito? O que deveria ter feito? Esta permanente tortura que a gente disfarça. A ideia recorrente que aquilo, quer dizer que a única coisa que a vida nos dá é um certo conhecimento dela que chega tarde demais, sempre tarde demais. Grandes cães pretos que se entredevoram dentro de mim. (…) Agora dei duas entrevistas, coisa que nunca deveria ter feito. Não ponho em causa a competência ou a honestidade dos jornalistas mas não me revejo em nada daquilo. Não sou assim e não sou capaz de exprimir o que sou. Os livros falam muito melhor do que eu. (…) Acho-me cansado desses jogos. Apetece-me desaparecer atrás das palavras, ser de facto o ninguém que sou: um nome apenas, numa capa. E deixar o resto para mim, dado que não tem nenhuma importância colectiva.
(…) Se eu pudesse passar a vida a limpo, como diz o Drummond, corrigia quase tudo. Que pena não podermos emendar os dias, o que fizemos, o que somos. (…) Acabando esta crónica retomo a correcção do livro na esperança de, ao emendá-lo, emendar-me. Fui sempre honesto a escrever. E nas outras coisas? Estarei a ser pretencioso ao julgar que sim?
Agora é manhã e está sol. Se eu fosse Deus parava o sol sobre Lisboa, escreveu Fernando Assis Pacheco. Tão linda a minha cidade com sol, tão lindo o meu país com sol. Vem aí o Outono, o inverno, o cinzento dos dias que desbota para nós. Não me apetece nada o frio, a chuva. (…) Que sorte escrever em português. Fernão Lopes: esta minguada maneira de meu escrever. Esta minguada maneira de todos nós escrevermos. (…) Fernão Lopes ou Fernão Mendes Pinto? (…) Oxalá o sol continue parado sobre Lisboa, parado sobre mim e eu embalsamado nele. Vestido dele. Afogado nele. (…) Nada mudou e tudo mudou: como eu gostava de ser pragmático em lugar de viver numa nuvem cujos limites, aliás, distingo mal. Ou então a nuvem sou eu. (…) Estou a deixar a caneta correr ao gosto dela, sem policiar nada. Que faça o que lhe apeteça. (…)
- Como estás tu?
é a pergunta mais difícil de responder do mundo. Na tropa tínhamos um dentista que era um soldado a quem ensinaram a arrancar dentes. A gente sentava-se numa cadeira de braços, ele pegava um alicate, dizia
- Frime-se
e começava a puxar. Estou a vê-lo tirar um molar ao capelão, com o joelho no peito dele porque o molar não vinha. Para o fim chorava o dentista, chorava o padre, secavam as lágrimas, o alicate avançava de novo
- Frime-se meu capelão
o capelão todo agarradinho aos braços da cadeira, o joelho imenso nas costelas, o barulho arrepiante do dente a quebrar-se, a ceder, a sair e o capelão branco como papel cavalinho a cambalear na parada. Nos momentos de desespero ordeno-me
- Frima-te
e começo a puxar o primeiro dente da alma que apanho, de joelho apoiado em mim mesmo. (…) Pois bem, devo ordenar-me
- Frima-te
e tirar a minha chuva interior a alicate. Se com o capelão deu resultado porque bulas não há-de dar comigo? (…) Ora aí está a solução: parar o sol sobre Lisboa, parar o sol sobre mim
- Frima-te António
até deixar de ter precisão de frimar-me.”
A. Lobo Antunes
Quantos de vocês o admitem?
4 comentários:
quase todos, provavelmente.mas igualmente de forma tão provável,nenhum com tanta clareza.Deixou-me de olhos esbugalhados.
Para te dizer a verdade, gostava de o admitir menos vezes... :(
bj.
Bolas, a alicate??
Ai a vida, a vida!
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