quinta-feira, agosto 03, 2006

cais


"Ode Marítima

(...)
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

(...)

(...)
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma reordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
(...)


(...)
Nós os homens construimos
Os nossos cais de pedra actual sobre água verdadeira,
Que depois de construídos se anunciam de repente
Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em Pedra-Almas,
A certos momentos nossos de sentimento-raiz
(...)

(...)
Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,
Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,
Que quando o navio volta ao porto
Há sempre qualquer alteração a bordo!

(...)
Flutuar como alma da vida, partir como voz,
Vover o momento tremulamente sobre águas eternas.
(...)
Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar,
(...)

Ah, as praias longínquas, os cais vistos de longe,
E depois as praias próximas, os cais vistos de perto.

O mistério de cada ida e de cada chegada,
A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade
Deste impossível universo
A cada hora marítima mais na própria pele sentido!
O soluço absurdo que as nossas almas derramam
Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe,
(...)

Ah, a frescura das manhãs em que se chega,
E a palidez das manhãs em que se parte,
Quando as nossas entranhas se arrepanham
E uma vaga sensação parecida com um medo
(...)
Encolhe-nos a pele e agonia-nos,
E todo o nosso corpo angustiado sente,
Como se fosse a nossa alma,
Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:
(...)
Uma oca saciedade de minutos marítimos,
E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor
Se soubesse como sê-lo...

(...)
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.
(...)

(...)
E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós!
(...)
Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías,
Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!

(...)
Caí por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!
(...)
Porque em real verdade, a sério, literalmente,
Minhas sensações são um barco de quilha prò ar,
Minha imaginação uma âncora meio submersa,
Minha âsia um remo partido,
E, a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!

(...)
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.

(...)
Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,
O Puro Longe, liberto do peso do Actual...
(...)

Toma-me pouco a pouco o delírio das coisas marítimas.
Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera,
(...)

Chamam por mim as águas,
Chamam por mim os mares.
(...)

(...)
Apelo lançado ao meu sangue
Dum amor passado, não sei onde, que volve
E ainda tem força para me atrair e puxar,
Que ainda tem força para me fazer odiar esta vida
(...)

Ah, seja como for, seja por onde for, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstracta,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!

Todo o meu sangue raiva por asas!
Todo o meu corpo atira-se prà frente!
(...)
Estoiram em espuma as minhas ânsias
E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochedos!
(...)

(...)
Explode-me todo o meu cérebro!
Parte-se-me o mundo em vermelho!
(...)

E há uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas.
(...)

Arre! por não poder agir de acordo com o meu delírio!
Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilização!
(...)

Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu.
Senti demais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim.
Decresce sensivelmente a velocidade do volante.
(...)
Dentro de mim há um só vácuo, um deserto, um mar nocturno.
(...)

(...)
E à tona dele, como algas, bóiam meus sonhos desfeitos...

(...)
O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo
Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção
Que fosse chamar ao meu passado
Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.

(...)

Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas coisas?
(...)

(...)
Tudo isto foi uma impressão só da pele, como uma carícia.
(...)

(...)
Lembro-me e as lágrimas caem sobre o meu coração e lavam-no da vida,
E ergue-se uma leve brisa marítima dentro de mim.
(...)

Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha.
Pensar nisto faz frio, faz fome duma coisa que se não pode obter.
(...)
Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!
Vertigem ténue de confusas coisas na alma!
(...)
Lágrimas, lágrimas inúteis,
Leves brisas de contradição roçando pela face a alma...

(...)

Tremo com frio da alma repassando-me o corpo
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.
(...)

(...)
Abranda o seu giro dentro de mim o volante.

(...)
Lá vai ele deixando o lugar defronte do cais onde estou.
(...)

(...)
Perde-te, segue o teu destino e deixa-me...
Eu quem sou para que chore e interrogue?
(...)
Eu quem sou para que me perturbe ver-te?
(...)
Ponto cada vez mais vago no horizonte...
Nada depois, e só eu e a minha tristeza,
(...)"

Álvaro de Campos

1 comentário:

GK disse...

... Suponho que, aseguir a isto, para "desanuviar", vais ler Margarida Rebelo Pinto... ;) LOL

Bj.